16 janeiro 2006

Capitulo 3º


Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errónea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

Fernando Pessoa, 1931













Buck corria para mim, enquanto eu caminhava na areia gelada da praia em direcção à tralha que tínhamos deixado à guarda do meu amigo canino...
Aquela imagem tornara-se rapidamente num deambular vago de ilusões, uma partida da minha memória, um capricho do meu subconsciente. Como um deja vu aquela correria alegre do cão tornou-se-me incaracteristicamente familiar. Uma lembrança diluída num espaço subitamente transformado em algo distante, belo mas nostálgico. Buck movimentava-se freneticamente ao meu redor, como que me recebendo de novo no seu habitat terrestre, agradecendo-me alegremente a presença diante de si. Pulava e ladrava de contentamento, tinha finalmente o seu dono em terra e pronto a recompensá-lo com as suas brincadeiras, os seus afagos molhados e salgados que tanto gostava de receber como prémio por guardar tão solenemente os pertences abandonados na areia.
Mas lá longe, numa distância que parecia não conter em si uma real significância espacial, mas que se excluíra há muito da minha perceptibilidade temporal, estava ela... aquela que me visitava em momentos de delírio consciente ou apenas em sonhos de angústia latente.
Raquel era uma figura nítida que se tornava mais perceptível à medida que os meus olhos se adaptavam de novo ao ambiente seco e desidratado da praia, enquanto o sal ainda os queimava na sua ousadia. Lá estava ela sentada, enrolando os braços em si própria, fitando-me sorridente. Aquele sorriso único, luminoso que me fornecia a cada lampejo uma nova descarga de energia positiva. Olhava-me complacente... sempre estivera ali olhando-me. Esperava-me, como fizera vezes sem conta em momentos esquecidos no tempo. Naquele tempo que percorremos juntos e no qual nos fizemos amantes, naquele tempo em que o amor desabrochou e maturou no coração de ambos.
Sempre sentira esta cena, como uma das mais simples mas belas interacções da nossa relação. Ela sempre que podia acompanhava-me à praia e tinha o maior prazer ao ver-me surfar.
Buck sempre lhe fazia companhia.
Por vezes abstraía-se do mar, confiando cegamente nas minhas capacidades empíricas para o desembaraço em mar revolto, e divertia-se brincando com Buck, em agitadas correrias pela praia. Isto era particularmente habitual em dias de mar clássico. Era comum estar no line up e observá-los aos dois, correndo e brincando na areia como duas crianças absortas na sua própria infância.
E ali estava ela, sentada na areia fria vendo-me reduzir metros no espaço em sua direcção. A minha mente tinha tornado o céu nebuloso, recuando a um saudoso dia de Inverno há alguns anos atrás. As arribas também tinham desaparecido dando lugar a vastas dunas povoadas aqui e ali de vegetação costeira. A praia estava deserta. O mar estava agitado e difícil, não era de todo um dia perfeito e o meu corpo destilara toda a energia possível dentro de água. Sentia-me cansado e naquele dia, o vento soprava forte e sem direcção definida, saboreando cada partícula de sal que se aninhara no meu corpo. Os cabelos de Raquel dançavam ao sabor do vento impregnando-os de maresia, enquanto o seu corpo se ergue em resposta à minha chegada.
Sorri-me e beija-me. Os meus lábios sabiam a sal e ela sempre adorara a sensação daquele beijo condimentado. Atenciosamente enrola-me uma toalha ao corpo, esfregando-a freneticamente no meu cabelo e cara. “Está frio, amor!!”, comentara.
A sua respiração envolvia-me a face, o tremer nervoso das suas carnes enquanto me tentava transmitir algum calor, absorviam a minha atenção, absorto num total turbilhão de sensações – frio, calor, prazer, cansaço...
Ela ajudou-me a despir o fato térmico de neoprene.
Sempre o fazia, era imperativo que o fizesse, aliás - as suas mãos em conjunto com os meus braços, pernas e pele, num esforço conjunto para me libertar da prisão em que se tornava aquele fato que emanava um cheiro intenso a borracha. Intenso mas delicioso, sintético mas agradavelmente confortável. Pesava nas mãos, estava molhado e era de uma espessura considerável em função das condições atmosféricas.
Encontrava-me nu, em pleno Inverno, fustigado impiedosamente pelos elementos, apenas enrolado a uma toalha de praia, enquanto ela atirava com o fato para dentro de uma caixa de plástico, para logo de seguida me ajudar a vestir.
Buck continuava observando-nos, agora quieto e mais calmo.
“Ainda me pergunto, o que te faz passar por este frio todo, só para andar em cima de umas quantas ondas, ainda para mais num mar revolto e assustador como este...”, dissera-me ela, vezes sem conta... tal como agora.
“Não compreenderás enquanto não experimentares... o surf não se exprime, sente-se!”, respondo-lhe.
Ela olha-me num rasgo de cumplicidade e sorri. Foi a primeira vez que lhe vi aquela expressão quando confrontada com a possibilidade de um dia tentar aprender a fazer surf.
“O que foi?”, pergunto-lhe...
Ela sorri-me com um brilho nos olhos. Um brilhozinho nos olhos que lhe incendiava a alma, e lhe colocava um sorriso aberto e sincero. Havia qualquer coisa que me escapava. E era algo de bom... mas que eu não conseguira até aí discernir. Seria ela a dizer-mo.
“Estás com um brilhozinho nos olhos... o que foi?”, insisti eu sorrindo.
“Não sei...”, ela hesita. E depois continua, “És capaz de me ter finalmente convencido a experimentar essa tua arte de domar ondas...”.
“Até onde vai a tua curiosidade, hein!”, exclamei.
“Então? Já não me queres ensinar, é?”, respondera-me ela em tom de desafio.
“De todo... apenas estou surpreendido. Sempre foste avessa a tal hipótese...”, observo eu. “E quantas vezes te tentei eu convencer!”
Ela esboça um sorriso maternal, e afaga-me a face com a sua mão. Aquela pele suave, aquele toque de seda em minha pele era um exercício de puro sentimento que me transmitia uma leve sensação de protecção espiritual, um abrigo onde podia guardar os meus mais profundos sentimentos de afecto, sem que estes fossem alguma vez conspurcados. Era um gesto de afecto, de amor e protecção.
“Mas é assim, meu amor!”, começa ela. “De repente apetece-me experimentar, talvez esteja a nascer algo dentro de mim... não sei...”.
A sua expressão era desconcertante. O seu sorriso era enigmático. Ela escondia-me algo. Algo positivo mas que se me escapava à compreensão, e estava muito para além daquela súbita e surpreendente decisão de aprender a fazer surf.

“What’s up, mate?!”, gritou-me Cássio aos ouvidos.
Parecia acordar de um sonho. Meio estremunhado e desorientado. Parecia ter acabado de levar com um set vassoura em cima, depois de um horripilante wipe out.
Encontrava-me de joelhos na areia, sentado sobre os meus calcanhares com a prancha pousada no colo de costas para o mar. Não sei há quanto tempo me encontrava naquele transe despropositado.
Buck estava sossegado e deitado a meu lado com uma expressão benevolente.
Eu estivera claramente num estado de consciência alterada, uma espécie de hipnose regressiva que me fizera reviver momentos passados e me retirara lentamente do mundo real. Abstraído completamente do mundo à minha volta, não fazia a mínima ideia de quanto tempo teria passado e de como poderia qualquer alteração à minha volta ter ocorrido. Poderia certamente desabar uma daquelas arribas que eu não daria por nada.
A minha posição indiciava que me tinha baixado para afagar Buck, mas que num qualquer instante a minha consciência tinha passado do estado consciente para um “nirvana” qualquer que me fizera reviver magníficos momentos junto daquela que amava mas que não mais estava fisicamente comigo.
Alguém que passasse por ali e observasse a minha figura, diria que estava a meditar. Mas não... estava tão somente a relembrar.
“A meditação costuma-se fazer antes... não depois!”, exclama Cássio quando constata que a minha consciência era suficiente para lhe prestar um mínimo de atenção. “Ou serás muçulmano? Meca não é para esse lado!”, brincou ele.
Eu mantive-me calado. Estava demasiado abalado para emitir qualquer tipo de ruído.
Sentia-me vazio. De repente tinha-a novamente nos meus braços, e da mesma forma repentina com que ela voltara, desaparecera. Assim, sem se despedir, enviando-me de novo para o meu mundo real, onde eu insistia em sobreviver à custa de umas quantas ondas diárias e de alguma dose de amnésia auto-induzida.
“O gato comeu-te a língua...”, tentou Cássio sem sucesso. Rapidamente se apercebeu que o meu espírito estava em letargia aguda e calou-se. “Ok, vamos comer um peixinho grelhado para retemperar. Lunch time, Buck”, gritou ele para o cão. Este abanou a cauda alegremente.
E lá fomos nós.