29 dezembro 2005

Capítulo 2º

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.

ATLÂNTICO – Sophia de Mello Breyner Andresen


A manhã levantara-se fresca e levemente ondulada ao sabor da maré vazia que ressoava em cada canto daquela praia. O pulsar do oceano ouvia-se já como que anunciando a chegada de um novo dia. Cheio de ondas por certo.
Era uma manhã de Inverno, húmida, fria e cinzenta. As horas essas, não mereciam a minha atenção. Preferia ignorar o efeito que a noção de tempo teria sobre mim àquelas horas da manhã. O que pensaria de mim próprio e especialmente da minha relação com a cama ainda quente que acabara de abandonar, se me consciencializasse que estava prestes a madrugar, mergulhando nas águas gélidas do oceano Atlântico? O tempo deixava de existir naquele momento... E era assim há já mais de seis anos: o relógio ficava em terra.
Ainda meio sonolento, embebido numa leve moleza característica do acordar, observo o mar pela janela da carrinha. Sim, dormia numa carrinha que havia adaptado às minhas necessidades itinerantes. A vida de nómada que havia escolhido depois daquela tragédia foi um passo arriscado. Mas que alternativa se afigurava menos dolorosa? Não houve nunca uma real sensação de perigo ou medo nesta escolha, porque quando se perde tudo o que realmente temos de mais precioso, nada mais nos enraíza a lugar nenhum, nada mais nos prende à vida que levávamos. A solução foi o corte com o passado e a fuga. Foi o que fiz já lá vão meia dúzia de anos vagueando por esse mundo fora. Uma carrinha transformada em casa ambulante, gasóleo e comida! As minhas necessidades limitavam-se a esta trindade de coisas materiais. A recompensa tinha-a todos os dias de cada vez que deslizava numa parede líquida, uma e outra vez. Horas e horas perdidas no tempo. De cada vez que o meu corpo sabia a sal. De cada vez que tinha o privilégio de observar o sol escondendo-se por detrás do oceano. De cada vez que saía do mar com aquele sorriso, com aquele cansaço reconfortante... Em suma, de cada vez que era feliz, na harmonia do elemento liquido salgado, que me fazia levantar ao mesmo tempo que o sol, e me diluir na sua matriz.
Come on, mate!!! Vamos a levantar pá! Off-shore. Metro e meio.” Eram as palavras entusiastas que vinham lá de fora depois de uma pancada na janela da carrinha. O australiano já andava a pé, fresco que nem uma alface alimentada pelo orvalho.
Acabo de me vestir num ápice. Em pleno Inverno, calções de banho e sweat-shirt de algodão com um forro polar que havia comprado aquando da minha visita à Irlanda. Também lá, como aqui o capuz era uma arma fundamental contra o frio.
O frio matinal invade o espaço interior, ao abrir a porta da carrinha. Estávamos estacionados em frente ao pico. O vento soprava de Este perfeito, alisando as paredes das ondas, esculpindo cada uma com as suas mãos perfeccionistas. “este off-shore fazia chorar o Cutileiro...”, penso eu divertido mas gelado. O retoque final deste escultor natural era dado pelo esvoaçar sensual da cabeleira da onda, num movimento eminentemente feminino. O resultado desta combinação de elementos em movimento – ar e água – era uma sucessão de linhas perfeitas que perante nós quebravam sozinhas numa pequena porção de costa. “Está glass, meu”, dizia-me Cássio, sem tirar os olhos do mar. “E sem ninguém...”
“Vamos para sul, ao Malhão. Se aqui está assim imagino que lá devam estar a partir umas com uns dois metros...”, acrescento eu.
Notara uma leve surpresa na expressão de Cássio. Não havia ninguém ali, as ondas eram nossas. Não seria de esperar muito crowd, sobretudo por estas bandas e tendo em conta o dia da semana – terça-feira. Eu até percebia a sua surpresa, mas...
“Apetece-me ter um lip acima da minha cabeça, pá!”, respondo eu, como que adivinhando o que lhe ia na cabeça. Ele encolheu os ombros. “Whatever...”, murmurou.
Cássio acabou por concordar com a alternativa mais a sul. Ainda para mais não conhecia as praias dessa zona. A sua viagem viera de Norte.
A manhã estava ainda bem na sua juventude, o off-shore que alisava as paredes daquelas ondas era o mesmo que me fustigava o corpo com aquele frio cortante. “Vou beber um cafezinho quente e comer qualquer coisita”, dissera-lhe eu. Buck abanava a cauda olhando para mim com aqueles olhos sempre amigos. Também tinha fome. Como era hábito, aquele velho Labrador preto tinha direito à sua parte do pequeno-almoço. Sempre assim fora desde que era apenas uma pequena e fofa bola de pêlo negra.

Buck era apenas um cachorrinho quando o conheci. Tinha sete semanas quando me foi oferecido por um amigo que possuía uma cadela que recentemente tinha dado à luz. Dissera-me que era puro. Não interessava, eu adorei aquele animal. Aquela bolinha de pelo negro e brilhante era irresistível. Aqueles olhos avelã pediam carinho e atenção. Pediam um lar. Eu aceitei-o de imediato. Raquel fazia anos daí a uma semana e eu tencionava brindá-la com este cachorrinho. Sei que iria adorar e que esta seria a melhor prenda que lhe podia oferecer. Pedira ao meu amigo para aguentar mais uma semana, até ao aniversário dela. Queria fazer-lhe uma surpresa e tanto.
Uma semana passara entretanto, o dia era 14 de Agosto. O aniversário da Raquel. Circunstâncias várias, principalmente do foro profissional, impediram que tivéssemos a maior parte do dia juntos. Da minha boca ouviu o primeiro desejo de feliz aniversário. Um sussurro matinal ao seu ouvido, presenteado com um beijo terno. Um “bom dia” especial, num dia especial.
Ao fim da tarde voltei a olhar aqueles olhos castanhos que todos os dias me apaixonavam, como da primeira vez. Estava sorridente, era o último dia antes das férias de Verão. Para trás ficavam os projectos, os telefonemas e o stress característico da actividade profissional que desempenhava. “Férias, finalmente... “ dissera ela radiante. Abracei-a sentidamente e partilhei do seu sorriso, sabendo que lho tornaria ainda mais aberto com a surpresa que lhe reservara.
Estava ali para a levar a jantar. Iríamos a casa. Banho e restaurante. Dirigimo-nos ao automóvel. Pego-lhe na mão e digo-lhe, “Vem ver uma coisa que tenho para te mostrar”. Ela intrigou-se. O que seria? Junto à porta do carro, abro-lha. Ela fica alguns segundos sem reacção olhando para dentro do carro, enquanto Buck olhava curioso para nós dois, como que perguntando “Afinal quem são estes dois?”. Ela coloca a palma da mão em concha à frente da boca, mostrando-se totalmente surpreendida. Pega no cachorrinho com muito carinho. Foi amor à primeira vista.
“É a tua prenda de anos, amor”, digo-lhe.
“Oh querido, que surpresa! Não imaginava, que coisa tão fofinha. Que bolinha de pêlo mais linda. Amei amor, és tão lindo...”, responde-me ela com um sorriso sincero de felicidade. Buck dá um latido de contentamento. Um ladrar de cachorrinho, muito suave. Nós sorrimos e ela abraçou-me. Juntos trocámos um beijo, felizes.
Desde este dia que Buck faz parte da minha vida. A amizade que existe entre nós é enorme e verdadeira. Ele é provavelmente a única coisa que me lembra ainda hoje que um dia também tive momentos felizes fora de água.

Estava absorto neste pensamento, nem me dando conta dos solavancos resultantes da condução no "caminho de cabras" que era o acesso à praia do Malhão. Buck e Jacob, o papagaio, iam lá atrás sossegados e atentos ao que se passava. Cássio continuava como sempre calado, também ele parecia absorto e distante. Passava muito tempo assim, absorvia o que se passava em seu redor e se ninguém lhe desse conversa, certamente ele não seria o primeiro a abrir a boca – a não ser para dizer que estava "off-shore" e "glass".
“Este caminho é do pior!”, exclamei quebrando o silêncio sepulcral que imperava naquele furgão carregado de pranchas no tejadilho. Até os animais estavam calados. Um efeito contagioso dos seus donos.
“Sim, não é bem uma onda de fácil acesso... assim à primeira vista.”, responde-me mantendo a concentração na condução, onde a sua principal tarefa era tentar evitar as enormes crateras existentes no meio do trilho de terra batida. Era Inverno, e estes buracos estavam ainda mais fundos e lamacentos.
Cássio pára o carro no cimo da ravina. O terreno não lhe parecia propicio para mais aventuras, tendo resolvido ficar-se por ali. Saímos do furgão, o sol parecia querer intrometer-se entre as nuvens que teimavam em popular o céu, escondendo o azul. Um raio de sol iluminava-me. Coloquei os óculos de sol, o céu parecia querer descobrir e com ele o sol aquecer-nos um pouco o corpo e o espírito. Diga-se aliás que estava um dia de surf clássico, e esses costumavam ser pródigos em céu limpo, apesar de frios.
E assim, ali estávamos os dois a checar o pico cá de longe. Parecia estar com um bom tamanho, apesar da distância a que nos encontrávamos não permitir uma rigorosa avaliação, não só do tamanho, mas também das condições gerais do mar. Uma coisa era certa. Estava glass, com uma formação excelente, sem on-shore que desordenasse o mar e muito consistente. Lá ao longe avistámos dois vultos que eram seguramente dois surfistas. Um estava já bem fora, no outside, e o outro preparava-se para entrar. As condições pareceram-nos excelentes e não havia sequer razão para hesitar em entrar. “Siga...”, digo eu.
Começámos a retirar as pranchas de cima do furgão. O quiver era variado, especialmente o dele. O meu tinha ficado todo na carrinha. Tinha apenas colocado a minha prancha 6’4” juntamente com as dele, nas quais se encontrava até um longboard – talvez um 9’0”.
A operação de nos preparar-mos para entrar no mar era rápida e sem grandes segredos. A temperatura do ar rondava perto de 10ºC o que não convidava a um corpo desnudado durante muito tempo. Por isso rapidamente vestimos os fatos de neoprene, metemos alguma tralha nas mochilas. Preparámos as pranchas e descemos a ravina até à areia. O Buck vinha alegremente, abanando a cauda, atrás de nós. Adorava a sensação única da areia a envolver-se nas patas e todo o espaço que uma praia lhe proporcionava, para correr, rebolar, brincar, tentar caçar gaivotas que estivessem em terra, etc. Mas Buck preferia sempre nestes momentos observar o dono, na segurança da areia fria. Calmo, pachorrento, mas sempre atento ao mar. É possível observá-lo vezes sem conta levantado de orelha fita tentando descobrir-me naquela imensidão de espumas brancas, que em certos dias parecem transformar o mar num lugar absolutamente caótico e sem nexo.
Mais uma vez, e como era hábito, Buck deitou-se perto das mochilas e das toalhas que havíamos deixado na areia e ali se deixou estar observando-nos. Fomos em passo de corrida lenta em direcção ao mar. Ao colocarmos os pés em contacto com a água constatámos que esta se encontrava bem mais agradável que cá fora. Apesar de tudo, fria o bastante para nos colocar numa hipotermia grave caso não tivéssemos a protecção do fato de neoprene.
Parámos para fazer o aquecimento, absolutamente fundamental antes de entrar na água. Este era um procedimento especialmente importante para evitar as cãimbras e outro tipo de lesões musculares devido à rigidez dos músculos ainda frios. Ao fim de cerca de 20 minutos de aquecimento lá entrámos.
A sensação da água fria debaixo de mim ao entrar na água é um misto de nervosismo e calma, um paradoxo curioso que se esfuma à medida que se apanham mais e melhores ondas e a confiança aumenta. O nervosismo inicial face à sensação de um perigo que está sempre presente por mais experiente que seja o surfista, dilui-se naturalmente com o aumento da confiança e do conhecimento do pico. Ainda assim, e nós sabia-mo-lo especialmente bem, esta confiança é uma sensação enganadora dentro de água pois é certo que de um momento para o outro qualquer pedaço de Céu se pode tornar no mais angustiante dos Infernos num ápice. A sensação inicial de perigo é de facto a que melhor representa as condições, deixando-nos sempre alerta e preparados para qualquer imprevisto – o mar é um lugar imprevisivel por excelência. No entanto, sem a confiança que se vai ganhando dentro de água, será impossível surfar as melhores e mais poderosas ondas. É uma questão trivial - sem confiança não pode haver qualquer tipo de evolução.
A calma inicial é interrompida quase instantaneamente pelas primeiras rebentações, que têm necessidade de ser evitadas recorrendo ao tradicional “patinho” – cabeça para baixo, joelhos na prancha e rabo para o ar, tal como os patos - de modo a poder haver uma progressão para o outside. Só assim se podem apanhar as ondas, estando no local certo, à hora exacta. De patinho em patinho lá vamos progredindo, mergulhando por baixo das rebentações. A calma já havia desaparecido, começando a dar lugar à adrenalina. Os sets eram enormes. Seguramente dois metros mal medidos. Possivelmente algumas ondas superavam esta marca.
“Não querias mar grande? Aí o tens...”, dizia-me Cássio rindo-se.
No pain no gain, my friend”, respondo-lhe bem disposto, ele concorda.
Mais uns quantos patinhos e estávamos no outside, onde por perto andavam os surfistas que há instantes havíamos observado da ravina.
Quase instantaneamente, Cássio que estava mais a sul rema freneticamente para uma onda média e apanha-a – era uma direita. Drop, algumas curvas na parede da onda para ganhar velocidade. O metro e meio de onda permite-lhe fazer um bottom-turn longo indo à base desta. Fixa o lip com o olhar antecipando o que ia fazer, e sobe a parede para na zona critica do lip da onda, dar uma paulada seguindo-se um floater animal passando toda a secção no fim da qual aterra na perfeição. Eu observava tudo sentado na prancha. Gritei em sinal de incentivo por tão brilhante cartão de visita. A sessão havia começado em grande.
A onda não era normalmente muito extensa não permitindo por isso uma grande sequência de manobras. Ainda assim, o swell neste dia estava a ajudar, e o pico estava extremamente consistente, sobretudo com um bom tamanho e no máximo das suas potencialidades no que toca ao seu comprimento. No entanto nunca mais de cinquenta metros surfaveis, dando ainda assim para duas ou três manobras de bom nível, incluindo eventualmente um tubo visto que não estava a fechar. Para completar, estavam a funcionar na perfeição a esquerda e a direita do pico. Isto era para nós uma dádiva rara, podendo assim “dividir o mal pelas aldeias” sem que ninguém se ficasse a rir. Cássio era regular e eu era gooffy, o que permitia a cada um de nós surfar de frontside à vontade.
Estávamo-nos a divertir bastante. O mar estava clássico e o tempo não existia. A cada onda que apanhava sentia-me mais confiante. A adrenalina libertava-se no meu corpo à medida que me fundia no oceano, que interagia harmoniosamente com as forças extremas do Atlântico. Cada uma daquelas ondas tinha viajado milhares de quilómetros para morrer aqui nesta pequena faixa de costa encravada entre Sines e Milfontes. Uma qualquer tempestade no Atlântico Norte, ao largo da Terra Nova teria originado as enormes vagas que trazem consigo o espírito do oceano longínquo. Uma onda não é mais do que uma vibração que faz elevar uma massa de água ao aproximar-se dos baixios costeiros. Traz consigo apenas a energia que a gerou, e mais nada. Em cada onda está a alma do oceano, a energia e a força de um elemento – a água. O ciclo natural das coisas faz-se de interacção, o equilíbrio deste planeta provém da interacção entre os vários elementos, entre as várias esferas. E eu não conhecia melhor e mais harmoniosa fonte de interacção entre a biosfera e a hidrosfera, que o deslizar hipnótico nas ondas. Golfinhos e focas têm este mesmo hábito, que só muito superficialmente pode ser considerado unicamente hedonístico.
Mais do que um simples prazer, o acto de deslizar numa onda toma em si um significado muito mais amplo, o da comunhão com a Natureza, a comunhão perfeita entre a nossa carne e a nossa alma, entre nós e o Cosmos. Mais do que um desporto ou um simples prazer, deslizar numa onda é uma janela que se abre para uma forma diferente de ver o mundo, um estilo de vida. Surf é a arte de viver a vida intensamente, no seu sentido mais lato.
Surf Power, hein?! Há quem lhe chame a arte de destruir ondas. E se há artista especialista dessa vertente, és tu!”, exclama Cássio, recém chegado ao pé de mim. “Até dá pena ver os farrapos em que se transformam certas ondas, após lhe passares por cima!”.
Eu sorrio.
A quantidade de ondas “consumidas” era de tal forma elevada que a ditadura dos números, não mais se aplicava.
Vinha aí mais uma, observo-a ainda longe. Uma massa de água começa a elevar-se da superfície aparentemente estática do oceano. “esta é das grandes”, penso eu. Começo a remar. Era enorme a onda, sinto-me no topo do oceano... tinha facilmente dois metros e meio e era uma esquerda. O take-off seria crítico, muito vertical. Apanho a onda, dropo-a facilmente ao longo da parede. Um bottom turn para preparar a manobra seguinte. Uma paulada, e o atraso necessário para ser apanhado pela secção que quebrava originando um tubo razoável. Entro no tubo, a velocidade é elevadíssima e tem de ser potenciada ao máximo para poder sair da “toca”. Um momento de suspense em que o mar me abraça por completo e onde o tempo parece parar. E eis que saio pelo buraco da agulha. Cássio delira e manda um berro de satisfação. Passei esta primeira secção em êxtase, a adrenalina tomara conta de mim, e a energia que o meu corpo ainda tinha combinava na perfeição com esta onda que ainda tinha power o suficiente para mais uma manobra. Uma ida à base – bottom turn bem fluido - e de uma assentada lanço-me naquela rampa liquida contra a outra secção que começa a fechar em sentido contrário ao meu movimento, como um ultimo fôlego da onda. Lanço-me contra o lip que estava prestes a colapsar e voo em direcção aos céus, impulsionado pela combinação da energias do meu corpo e da onda. Um ou dois segundos depois, dá-se uma aterragem controlada na espuma. Olho para trás e perco velocidade elevando os braços em direcção a Cássio que estava no outside. Afundo-me na água à medida que a prancha perde velocidade.
Esta onda já não passava de um caótico turbilhão de espuma branca. E o meu sorriso era mais valioso que mil palavras para expressar o que me ia na alma. Foram certamente umas 6 horas dentro de água. O sol que neste momento já se fazia notar em todo o seu esplendor, ia alto fazendo adivinhar o tempo já bem perto do meio-dia. A maré inclusivamente já estava praticamente cheia e eu tinha os dedos completamente engelhados. Resolvo sair, exausto.
O tempo voltou a existir.

25 dezembro 2005

Capitulo 1º





Estava só junto às ondas, numa noite de estrelas.
Nem uma nuvem no céu, nem no mar velas.
Meus olhos viam para além de realidade.
E os bosques, os montes, e toda a natureza,
Pareciam falar num murmúrio de incerteza
Às ondas, à claridade.

ÊSTASE – Victor Hugo










Sorvia o chá quente enrolando as mãos frias em volta do copo colorido de onde se escapava um vapor aromatizado a ervas, relaxante, que confortava e refrescava a alma e aquecia o corpo frio, fustigado incessantemente pela maresia húmida que provinha do mar. Era noite escura, breu cerrado... a lua essa estava em crescente, tímida e pouco luminosa. O som da dinâmica oceânica ouvia-se como o bater de um relógio de pêndulo. Eram as ondas que partiam lá fora, regulares, sincronizadas e certinhas qual relógio suíço. O som que vinha do mar era-me familiar, era-o para qualquer ser como eu. A força poderosa que estava por detrás daquele som significava para mim a mais bela manifestação da natureza e proporcionava-me as mais sublimes sensações alguma vez vividas.
Nesta noite sentia-me bem, o frio diluía-se na aura de calor emanada pela fogueira, o fluido quente e saboroso que corria na minha garganta tonificava-me o corpo, mantendo-me quente e confortável. “Trouxe-o de Marrocos, aquando da minha estadia em Ancre Point!”, murmura-me Cássio enquanto enchia o segundo copo de chá. “Parece que não trouxeste só o chá”, respondo-lhe apontando para os copos, tipicamente marroquinos, de vidro colorido. Verde, azul ou vermelho todos decorados com padrões magrebinos. Ele olha-me por cima dos óculos e a sua expressão era de concordância, mantendo-se concentrado em adoçar o chá com um pacote de açúcar que havia surripiado de um pequeno café onde havíamos parado para comer qualquer coisa, em Porto Covo.

George Steiner dissera um dia que a Europa era feita de cafetarias e pequenos cafés. Que a sua cultura, costumes e vivências tinham como denominador comum esses mesmos cafés. Fernando Pessoa frequentara os cafés de Lisboa, Kierkegard passara por alguns enquanto caminhava nas ruas de Copenhaga. As mais brilhantes mentes europeias, artistas conhecidos ou pensadores indigentes, todos tinham os seus cafés, balcões ou simples tascos, onde fluía o pensamento e criações que moldaram a Europa, ao longo dos tempos. Este era um facto que tentara explicar ao meu novo amigo luso-australiano, quando este me indagara acerca das razões para uma tal proliferação de cafés, pequenas cafetarias e enormes esplanadas por todo o território luso. “Em qualquer grande metrópole, cidade ou vila... lá está mais um café, uma esplanada, por onde quer que passe. As pessoas aqui parecem não conseguir passar sem estes locais”, dissera-me ele tentando fundamentar a sua questão.

Cássio preferia o chá! Continuava calado sorvendo o seu chá quente, enquanto eu absorvia a maresia, deixando as palmas das mãos coladas ao vidro verde do meu copo marroquino.
Cássio não era de grandes conversas. Era notório que se preocupava mais em recolher informação de tudo o que em seu redor se passava. No mar, essa faceta era claramente uma qualidade – nunca vira alguém apanhar ondas como aquele tipo. Em que condições fossem, a sua visão e leitura do mar permitiam-lhe apanhar sempre as melhores. “Poupo energia observando o mar com atenção”, dizia. De facto, eram raras as vezes que uma onda lhe roubava a energia do seu corpo não compensando o seu espírito de igual forma. Não era um tipo sisudo nem demasiado severo, era no entanto um simples indivíduo pouco dado à tagarelice. Australiano de nascimento - o surf corria-lhe nas veias - e português de descendência – o sal era condimento do seu sangue – estava há duas semanas de visita a Portugal, pela primeira vez. Órfão aos 6 anos, nunca tinha tido a oportunidade de conhecer o país da sua mãe, conservando no entanto a língua entretanto esquecida e recentemente reaprendida, depois de alguns meses no Brasil. Viajava há já oito meses de prancha às costas. Era a perfeita imagem do estereótipo do surfista em busca da onda perfeita. “Soul Surfer!!! (risos) Há cada vez mais tipos como tu e eu... que por qualquer vicissitude da vida, resolvem enfiar-se numa jornada de introspecção, escapando a um mundo que de outra forma acabaria com a nossa vida. Lentamente, muito lentamente...”, dizia ele na primeira conversa que tivéramos, quando eu lhe contara a história da minha vida. Eu assentira calado.
Havia pouco mais a dizer deste quarentão, que viajava num forgão VW Transporter de 73 e na companhia de Jacob, o seu velho papagaio.
Continuávamos sentados nas dunas em volta da fogueira, degustando o chá que Cássio havia trazido do Magreb.
“O chá tem a mais elevada qualidade que consigo entender em algo que se beba...”, dizia ele olhando o mar escuro. “Aquece-me a alma e o corpo no Inverno. Refresca-me no Verão. Ainda assim, continua a ser apenas água com o vício do sabor”.
Eu sorri. “Interessante. Nunca tinha pensado nisso...”.
“Sabes o que mais me entristece na história da tua vida?”, pergunta-me ele repentinamente. “É teres apenas 30 anos!!”
Eu entendi o sentido daquelas palavras e continuei a olhar o infinito. “A tragédia não escolhe datas... simplesmente acontece, e quando nos damos conta, a morte afigura-se-nos mais simpática.”, respondi. “A minha aconteceu quando eu tinha 24... a tua quando mal sabias o que era o significado de vida ou de morte.”
“Correcto, mas a tragédia diluiu-se na minha vida como dificilmente a tua se diluirá. Aprendi a viver com isso, aliás... dir-te-ei que moldou aquilo que sou hoje, da forma mais positiva que possas imaginar. Fez-me chegar ao surf! Fez-me crescer mais depressa, ainda que isso não seja totalmente positivo. Eu hoje, apesar de tudo sou feliz. Perdi os meus pais quando era novo, é um facto... mas também é um facto que a minha capacidade para amar era mais limitada. Que a minha noção de vida e de morte não era tão absoluta e dramática como o é hoje para a maioria das pessoas. Senti a morte dos meus pais na saudade, na sua ausência, na falta de carinho e afecto que só eles me poderiam dar. Mas passaram 34 anos, aprendi desde cedo a viver com isso, tornou-se no facto incontornável da minha vida. Uma cena do filme da minha existência. Hoje sou feliz, não só pelas ondas que apanho, pelos países que atravesso, ou pelas mulheres que já tive... mas essencialmente pela vida que levo. Aqui como na Austrália. Esta viagem não é um escape a esse acontecimento, é um escape à monotonia que também pode destruir-nos lentamente. A minha vida, essa sim tornou-se num escape à minha tragédia pessoal. Não acredito que seja agradável perder-se quase tudo em alguns segundos, aos 24 anos, com projectos e sonhos por realizar... a dois”
Concordo acenando de olhos fixos na fogueira.
“Tu queres apenas fugir à mágoa e à solidão”, conclui.
“Solidão... essa compensa-se com as ondas. A mágoa dilui-se no mar, de cada vez que ele me recebe. Quando não tenho ondas, definho... a solidão e a mágoa tomam conta de mim, por isso tenho de viajar, para poder ter sempre um motivo para entrar no mar: as ondas.”
“É a isso que eu me refiro. É precisamente aí que a tua história se diferencia da minha”, diz ele olhando-me complacentemente.
O silêncio voltou a envolver a noite, cortado apenas pelo estalido da madeira a arder e pelo som das ondas que quebravam lá fora...

Capitulo 0


Haviam passado alguns anos desde que aquela face me tinha fermentado o sopro lento do coração, uma última vez. A simplicidade daquele sorriso, o suave deambular das suas carnes, o leve cintilar dos seus olhos e aquele dissuasivo doce impregnado nas suas palavras. Anos! Anos passaram desde aquele ultimo suspiro... breve, ébrio – definitivo.

Passaram-se anos, os mesmos que me acompanharam pelos caminhos percorridos desde esse dia. Perante o passado, havia eliminado o meu sedentarismo e motivara uma nova jornada, queria esquecer o injusto destino desenhado no meu karma, redefinir o meu silêncio perante a vida, e alimentar um sonho disfarçado de quimera – tudo depois do acordar violento dum sonho tornado pesadelo.

A minha vida, tornara-se desde a sua morte, num encarrilar constante de perspectivas inacabadas. Fugia do mundo terreno refugiando-me no etéreo mundo do espirito, só, despojado da pátria, acolhido num mundo de introspecção. Tornara-me um eremita nómada – um involuntário eufemismo moderno.

... sim, desde a sua morte, a morte daquela que amara em tempos, a morte de quem matara – naquele dia quem conduzia aquele carro era eu! Um estridente derrapar...

um flash angustiante...

...e o impacto frio e seco, inundado daquele indescritível som laminar de chapa contorcida... olhei para o lado, um olhar distante jazia diante do meu, a vida esfumara-se daquele corpo prostrado ao meu lado, o seu coração quente do meu amor, tornara-se gelo, inerte e parado, desejei naquele momento que ao invés do dela, o meu tivesse tido tal sorte. Desde esse dia que o desejo, tivesse eu tal poder para voltar atrás no tempo...