09 abril 2006

Capitulo 4º












Poderás esquecer aquele com quem riste,
Mas nunca aquele com quem choraste.
Deve haver algo de estranhamente sagrado no sal,
Uma vez que ele está nas nossas lágrimas e no mar

Kahlil Gibran


O sol vislumbrava-se lá onde o mar acaba, o mundo finda na sua imensidão e o céu se funde com o todo terreno, em tons de laranja e rosa com laivos de azul. Os tons dum final de tarde de Inverno, um idílico cenário digno de um qualquer quadro impressionista de Gauguin ou Monet, onde as cores se heterogenisam num colorido alegre e quente. Naquela que era uma tarde dilacerada pelo vento gelado. Para oriente algumas estrelas já observavam o mundo do alto da sua infinitude. O céu a Este estava de um azul forte total.
Eu e Cássio, estávamos sentados no cimo da carrinha, no local onde costumavam viajar as pranchas, virados na direcção do mar observando aquele quadro dinâmico, de movimentos lentos e pautados pelo ritmo do tempo real, essa invenção do homem. Voltáramos a S. Torpes, almoçámos no Trinca Espinhas, o restaurante que ficava em frente à praia de, e ao fim da tarde aproveitáramos a maré vazia para surfar mais algumas ondas. Tínhamos apanhado umas quantas esquerdas perfeitas um pouco mais a sul do restaurante, naquele que foi um festim de tubos perfeitos.
Agora, estávamos sentados observando o horizonte. Os fatos secavam debruçados sobre as portas da carrinha que se mantinham abertas. As pranchas, encostadas ao cercado de madeira que delimitava a área do parque de alcatrão que ficava defronte ao pico, secavam também.
O vento tinha amainado ainda que se mantivesse determinado em enregelar os corpos de dois surfistas indigentes que teimosamente insistiam em lhe fazer frente. Nós, sentados em cima da carrinha de Cássio, sentíamos o vento quebrar-se sobre os nossos corpos. O calor corporal era mantido debaixo de roupas quentes.
Deixo-me estar observando o mar, onde as ondas ainda me absorviam na sua perfeição. Linhas continuas e sem quebras, observavam-se chegando à costa consecutivamente, onde terminavam a sua jornada quebrando a um ritmo ininterrupto, nos baixios lusitanos mesmo diante de nós. Para gáudio de muitos como nós que povoavam aquelas águas em busca de ondas perfeitas, este tinha sido um dia, onde ondas e vento tinham sido profícuos, ao presentearem todos com tubos perfeitos, num espectáculo não muito vulgar por aquelas bandas.
Eu sentia-me bem, tinha o espírito num estado zen que me fazia estar naquele local e não estar ao mesmo tempo, em que o tempo era apenas isso, uma palavra, uma invenção das coisas conscientes para manter a consciência em alerta. A minha consciência não estava alerta, pairava sobre o mar e a luz do crepúsculo como um pelicano dos mares do sul. O vento transportava a minha alma pelos confins do oceano azul, às origens daquelas ondas sintonizando-me na frequência cósmica do pulsar milenar dos mares.
Mantinha-me absorto na minha hipnose, quando Cássio me interrompe:
“Uma onda daquelas alimenta a alma de um ser humano que esteja disposto a compreender o seu sabor”, dissera ele, num tom filosófico ao mesmo tempo que uma onda se destacava no horizonte.
“Compreendo. Ainda agora estava a saborear umas quantas”, respondo eu.
“Imagino que sim.”
Rimo-nos juntos.
Lá longe no areal húmido onde o mar se funde com a areia, duas personagens se destacam como as únicas que naquela hora se atreviam a saborear o delicioso acto de brincar na areia. Corriam, gritavam alegremente enquanto os seus corpos pareciam bailar ao sabor das ondas. Uma mulher e uma criança... A alegria contagiante daquela criança envolvia ambas numa aura de infantilidade saudável, vivendo num mundo de fantasia e inocência. Um mundo onde nenhum mal acontece, onde as coisas reais existem para nos provocar o bem, o mundo inocentemente idealizado na imaginação de uma criança, que como um belo aroma se espalha e envolve todos à sua volta. Era o caso daquela mulher, soltando a criança que havia em si, rindo, correndo e brincando.
“Duas crianças...” – exclamo eu, acenando com a face.
“Exacto... em linguagem técnica, uma mãe e a sua cria” – responde-me sorrindo.
“Deve ser uma sensação única... enfim!”, exclamo-lhe fixo naquelas duas personagens e no cenário idílico que as rodeava, aquele pedacinho de costa transformado num quadro colorido a aguarelas. Aquele minúsculo grãozinho de areia num mundo que se esquecia frequentemente que a vida é feita de pequenas coisas sustentadas em sentimentos e sensações genuínas e simples. O sentido da vida encontra-se e fortalece-se em cada cantinho como este, onde o amor incondicional é o sentimento fundamental. Aquele quadro evidenciava esta realidade mais do que qualquer frase.
“É sem dúvida um sentimento indizível por palavras...”, responde-me Cássio.
Cássio parecera-me surpreendentemente convincente. Aliás, este tipo ainda era uma incógnita para mim. O pouco que sabia, era o suficiente para ter dele uma ideia positiva o suficiente para lhe confidenciar uma série de peripécias da minha vida. Coisas que nunca tinha contado a ninguém, mais por me ter afastado da sociedade do que por falta de vontade. Cássio parecia-me um tipo pragmático, simples e que nunca perdia uma boa oportunidade de manter um silêncio apaziguador... por vezes até demasiado profundo.
“Há pouco reparei na tatuagem que tens no braço, junto ao ombro... é um desenho de uma face feminina”, interpelo-o a medo... “Mais propriamente uma miúda!”
Ele olha-me e denoto-lhe uma repentina mudança na expressão. A sua habitual serenidade desvanecera-se e um misto paradoxal de desconforto e altruísmo súbito, envolveram o seu olhar enquanto se volta de novo para o mar. O silêncio absorve o ambiente. Após alguns segundos de tensão provocados pela minha pergunta, Cássio retorna ao seu habitual pragmatismo sereno. Olhava fixo o horizonte...
“É a foto da minha filha.”, responde-me secamente.
Eu ainda que não totalmente apanhado pela surpresa, mantenho-me silencioso na expectativa do que poderia surgir das suas palavras. Será a sua história um drama maior do que aquilo que me havia contado – o orfanato aos seis anos?! Subitamente se abate sobre mim um terror absurdo ao perceber que os sentimentos de Cássio pudessem ser abalados fortemente com o levantar desta nova questão.
“Se não quiseres falar do assunto, eu respeito!”, digo-lhe, na esperança de poder atenuar algum sentimento negativo que pudesse ter despertado momentos antes.
“Não tem problema... eu efectivamente tenho uma filha.”, afirma. Ele tinha dito “tenho”... sinto-me então mais aliviado ao perceber o significado do tempo presente expresso nas suas palavras.
“Mas vejo-a muito raramente, e não tem nada a ver com o facto de andar a deambular pelo mundo à procura de ondas!”, exclama, para seguidamente prosseguir: “Eu tive uma relação com aquela que foi o meu único e verdadeiro amor, ainda hoje penso assim... mas tudo não passou de uma ilusão e acabou muito antes de termos tido a oportunidade para formar seja o que for em comum.”.
Eu ouvia-o atentamente. Nunca o vira assim, de peito aberto a contar coisas sobre si. Era no entanto óbvio que tudo aquilo lhe queimava o espírito e se acumulava há muito dentro de si, sem que alguma vez tivesse tido oportunidade ao longo destes oito meses de viagem, para deitar para fora todas as suas mágoas.
“Acontece que as coisas correram mal... sabes nós na Austrália temos o péssimo hábito de nos embebedarmos até cair para o lado...” prossegue ele lançando-me um olhar conformado e até de alguma vergonha.
“E por vezes as coisas descambam...”, acrescento eu.
“Pois! Ela nunca me perdoou... mas nesse momento ela já estava grávida de 3 meses. Eu até hoje não consigo perceber o que me passou pela cabeça!”, exclama.
Cássio parecia agora um miúdo envergonhado que conta a traquinice à sua mãe na esperança de ser perdoado e poupado a um castigo exemplar. Era óbvio que lhe tinha tocado no ponto fraco.
“Enfim, qualquer tentativa de reconciliação revelou-se infrutífera e acabou tudo numa disputa nos tribunais pela custódia pela miúda. Eu entrei na guerra mais por obrigação do que em consciência. Eu sabia que tinha errado, bem como sabia que uma criança com meses precisaria muito mais dos cuidados da mãe do que dos caprichos do pai. O que me revoltou ainda assim... foi o facto de ela nunca me ter deixado ver a Caitlyn – é esse o nome da minha filhota...”. Denoto-lhe nesse momento um sorriso de menino e um olhar vidrado. Ele desvia de novo o olhar para o mar.
“Mas nunca te deixou ver a miúda?”, questiono eu.
“Durante os primeiros tempos passava a vida a fugir de mim. Eu nunca consegui acompanhar a gravidez dela, e até ao segundo mês todas as minhas tentativas para ver a minha filha foram em vão... foi nessa altura que tive de partir para a justiça novamente, quanto mais não fosse para a poder ver pelo menos aos fins de semana. Infelizmente o nosso amor transformou-se em ódio. Ela fez de tudo para me prejudicar diante da miúda. A Caitlyn tem hoje 8 anos e eu sinto que não tem uma boa imagem do pai. Entretanto ela arranjou outro tipo com quem está a viver já lá vão 6 anos... sabes, tive medo que ela perdesse todas as referências do pai e transformasse o padrasto no verdadeiro pai dela. Fiquei assustado mesmo.”
“Essa tatuagem é de quando ela tinha que idade? Cinco ou seis anos?”, pergunto-lhe.
“Sim, foi talvez a altura das nossas vidas onde...”, Cássio olha novamente na direcção daquela mãe e seu filho que agora estavam sentados e imóveis na areia observando o mar. Depois olha o céu e os seus olhos humedecem-se. Reparo que se esforça por manter a postura. Coloco-lhe uma mão no ombro e mantenho-me silencioso observando o oceano.
“Sabes... nunca fui tão feliz na vida quanto o fui naqueles fins de semana que passava com a minha menina, naquela época. Depois a nossa relação começou a piorar. Não sei se por culpa minha, da mãe ou do padrasto. Comecei a meter coisas na cabeça e nada me convencia que não eram eles que lhe estavam a envenenar a mente contra mim.”
Ele faz um compasso de espera e passa a mão pela face. Engole em seco, noto-lhe um nó na garganta.
“Até que há coisa de um ano, fiz uma asneirada das boas. Agredi o tipo que vive com a mãe da minha filha... em frente dela!”, exclama com uma mágoa profunda nos olhos. “Foi a oportunidade que eles queriam para me retirarem a minha filha de vez... e assim decidiu o juiz. Deixei de a puder ver aos fins de semana, passei a ter direito à sua presença uma vez em cada dois meses. Ate que ela deixou de querer ver-me... fiquei destroçado, pa! Não imaginas o que é um pai sentir-se rejeitado pela própria filha... é horrível, e não desejo tal coisa a ninguém!”. Cássio desta vez não consegue deixar escapar umas lágrimas teimosas, prontificando-se imediatamente a limpa-las com as mãos.
“Mas ela é muito nova, não lutaste por ela?”, interpelo-o não compreendendo tamanho conformismo.
Ele olha-me...
“Tu sabes bem o quanto o homem pode ser fraco, não sabes?”, responde-me friamente.
Eu nesse momento percebi-o perfeitamente. Afinal de contas porque havia eu fugido também? As razões pouco interessam e na verdade qualquer tentativa de as dissecar revela-se um tremendo erro. Coisas que só se sentem nunca poderão ser explicadas por palavras ou compreendidas pela superficialidade do pensamento racional.
Na verdade era óbvio que todos nós tínhamos os nossos pequenos focos de instabilidade emocional. Apenas nos transformávamos em intérpretes diferentes de um mesmo filme, com muitas coisas em comum e com muitas outras que nada tinham de semelhante. A fuga parecia ser a característica mais vincada destes dois intérpretes, fugíamos de um destino que nos tirara as poucas razões para sorrir alegremente e nos tingira o ambiente em tons de cinzento.
Neste momento o sol afundava-se no horizonte, o horizonte que tranquilizava e acalmava o mais tempestuoso dos espíritos. A mãe e a sua criança levantavam-se, o colo protector daquela mulher era agora o refúgio mais desejado e aguardado daquele miúdo, estaria exausto pela brincadeira e pedira a sua mãe que o levasse ao colo. Ela acedeu carinhosamente. Todos nós nos lembramos certamente do que é pedir o colo da nossa mãe enquanto crianças indefesas e frágeis, das desculpas que dávamos para nos acolherem em seus braços, quiçá das birras que fazíamos na tentativa de dissuadir a mãe mais renitente. Lembrei-me exactamente desses tempos, estavam muito vivos na minha memória, sorri para dentro ao contemplar tão bonitos momentos passados.
Anos mais tarde o colo da mãe desaparece, tornamo-nos maiores e mais pesados, a adolescência promove-nos a independência emocional dos nossos pais e num ápice o colo materno é substituído pelo colo protector da mulher amada. Aquele colinho protector e afectuoso, quente e confortável. A cabeça no seu peito ou no seu ventre, enquanto ela afaga os meus cabelos proferindo palavras doces e cheias de amor, protegendo aquele que ama numa atitude profundamente maternalista. É o momento em que a amante se transforma na mãe e em que o amor platónico atinge a sua plenitude. Preferia não me lembrar desses momentos, momentos que conhecia e me transportavam directamente para o universo onde Raquel ainda aparentemente vivia.
Cássio saltara para o chão alcatroado e já se preparava para recolher o fato de neoprene e a prancha! Fiz o mesmo...

6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caa vez melhor, é o q te posso dizer... A história flui naturalmente transparecendo a facilidade c q tu a transcreves directamente da tua alma p o computador.

O enredo está a tomar forma e aparece consistente e credível.

O português é fácil de ler, bem construído, onde se nota a cultura rica q possuis e de gajo atento q és. Nada de grandes pomposidades, mas ainda assim elegante.

Estou a gostar bastante de ler.

Fiquei cativado e espero pelo próximo capítulo. Depois quero uma cópia assinada e c dedicatória, lol.

Abração companheiro de ondas!

14:47  
Anonymous Anónimo said...

Ta bom, muito bom mesmo.. um pouco de drama nao faz mal a ninguem , pelo contrario.. cria uma maior empatia entre o leitor e as personagens, "obrigando" os leitores a pedir desenvolvimento da historia... :) for�a ai!

01:32  
Anonymous Anónimo said...

Oi,bem vc diz tudo o que precisa ser dito,soh tenho a dizer que seu site é mto bonito e mto bem escrito

01:01  
Anonymous Anónimo said...

Hey there...
Gostei muito do que escreveste, se decidires parar de escrever aqui, avança para um livro.
Pelo menos um vendes. :)

15:45  
Anonymous Anónimo said...

Vim ter aqui de para-quedas numa pesquisa que fiz no google...e tenho a dizer que os textos estao um espectaculo, grandes mas que prendem a pessoa logo no 1º paragrafo!

Uma pessoa consegue captar toda a tristeza e magoa que sentes nas palavras que escreves, com pequenas alegrias no convivio com os teus companheiros e o mar!

Parabéns...mais uns quantos capitulos e podes começar a pensar em editar um livro...

15:56  
Blogger Viagem a Marrocos said...

Bom..eu adoro ler..leio de tudo um pouco, mas até hoje nada me emocionou tanto como este blog.

No dia em que editares um livro eu estarei lá na primeira fila para te pedir um autógrafo.

Pena que a história seja tão triste, mas talvez por isso o texto tenhaa sido escrito de uma forma tão sentida.

Parabéns..é só oq ue posso dizer. Muitos Parabéns!!

14:43  

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