09 abril 2006

Capitulo 4º












Poderás esquecer aquele com quem riste,
Mas nunca aquele com quem choraste.
Deve haver algo de estranhamente sagrado no sal,
Uma vez que ele está nas nossas lágrimas e no mar

Kahlil Gibran


O sol vislumbrava-se lá onde o mar acaba, o mundo finda na sua imensidão e o céu se funde com o todo terreno, em tons de laranja e rosa com laivos de azul. Os tons dum final de tarde de Inverno, um idílico cenário digno de um qualquer quadro impressionista de Gauguin ou Monet, onde as cores se heterogenisam num colorido alegre e quente. Naquela que era uma tarde dilacerada pelo vento gelado. Para oriente algumas estrelas já observavam o mundo do alto da sua infinitude. O céu a Este estava de um azul forte total.
Eu e Cássio, estávamos sentados no cimo da carrinha, no local onde costumavam viajar as pranchas, virados na direcção do mar observando aquele quadro dinâmico, de movimentos lentos e pautados pelo ritmo do tempo real, essa invenção do homem. Voltáramos a S. Torpes, almoçámos no Trinca Espinhas, o restaurante que ficava em frente à praia de, e ao fim da tarde aproveitáramos a maré vazia para surfar mais algumas ondas. Tínhamos apanhado umas quantas esquerdas perfeitas um pouco mais a sul do restaurante, naquele que foi um festim de tubos perfeitos.
Agora, estávamos sentados observando o horizonte. Os fatos secavam debruçados sobre as portas da carrinha que se mantinham abertas. As pranchas, encostadas ao cercado de madeira que delimitava a área do parque de alcatrão que ficava defronte ao pico, secavam também.
O vento tinha amainado ainda que se mantivesse determinado em enregelar os corpos de dois surfistas indigentes que teimosamente insistiam em lhe fazer frente. Nós, sentados em cima da carrinha de Cássio, sentíamos o vento quebrar-se sobre os nossos corpos. O calor corporal era mantido debaixo de roupas quentes.
Deixo-me estar observando o mar, onde as ondas ainda me absorviam na sua perfeição. Linhas continuas e sem quebras, observavam-se chegando à costa consecutivamente, onde terminavam a sua jornada quebrando a um ritmo ininterrupto, nos baixios lusitanos mesmo diante de nós. Para gáudio de muitos como nós que povoavam aquelas águas em busca de ondas perfeitas, este tinha sido um dia, onde ondas e vento tinham sido profícuos, ao presentearem todos com tubos perfeitos, num espectáculo não muito vulgar por aquelas bandas.
Eu sentia-me bem, tinha o espírito num estado zen que me fazia estar naquele local e não estar ao mesmo tempo, em que o tempo era apenas isso, uma palavra, uma invenção das coisas conscientes para manter a consciência em alerta. A minha consciência não estava alerta, pairava sobre o mar e a luz do crepúsculo como um pelicano dos mares do sul. O vento transportava a minha alma pelos confins do oceano azul, às origens daquelas ondas sintonizando-me na frequência cósmica do pulsar milenar dos mares.
Mantinha-me absorto na minha hipnose, quando Cássio me interrompe:
“Uma onda daquelas alimenta a alma de um ser humano que esteja disposto a compreender o seu sabor”, dissera ele, num tom filosófico ao mesmo tempo que uma onda se destacava no horizonte.
“Compreendo. Ainda agora estava a saborear umas quantas”, respondo eu.
“Imagino que sim.”
Rimo-nos juntos.
Lá longe no areal húmido onde o mar se funde com a areia, duas personagens se destacam como as únicas que naquela hora se atreviam a saborear o delicioso acto de brincar na areia. Corriam, gritavam alegremente enquanto os seus corpos pareciam bailar ao sabor das ondas. Uma mulher e uma criança... A alegria contagiante daquela criança envolvia ambas numa aura de infantilidade saudável, vivendo num mundo de fantasia e inocência. Um mundo onde nenhum mal acontece, onde as coisas reais existem para nos provocar o bem, o mundo inocentemente idealizado na imaginação de uma criança, que como um belo aroma se espalha e envolve todos à sua volta. Era o caso daquela mulher, soltando a criança que havia em si, rindo, correndo e brincando.
“Duas crianças...” – exclamo eu, acenando com a face.
“Exacto... em linguagem técnica, uma mãe e a sua cria” – responde-me sorrindo.
“Deve ser uma sensação única... enfim!”, exclamo-lhe fixo naquelas duas personagens e no cenário idílico que as rodeava, aquele pedacinho de costa transformado num quadro colorido a aguarelas. Aquele minúsculo grãozinho de areia num mundo que se esquecia frequentemente que a vida é feita de pequenas coisas sustentadas em sentimentos e sensações genuínas e simples. O sentido da vida encontra-se e fortalece-se em cada cantinho como este, onde o amor incondicional é o sentimento fundamental. Aquele quadro evidenciava esta realidade mais do que qualquer frase.
“É sem dúvida um sentimento indizível por palavras...”, responde-me Cássio.
Cássio parecera-me surpreendentemente convincente. Aliás, este tipo ainda era uma incógnita para mim. O pouco que sabia, era o suficiente para ter dele uma ideia positiva o suficiente para lhe confidenciar uma série de peripécias da minha vida. Coisas que nunca tinha contado a ninguém, mais por me ter afastado da sociedade do que por falta de vontade. Cássio parecia-me um tipo pragmático, simples e que nunca perdia uma boa oportunidade de manter um silêncio apaziguador... por vezes até demasiado profundo.
“Há pouco reparei na tatuagem que tens no braço, junto ao ombro... é um desenho de uma face feminina”, interpelo-o a medo... “Mais propriamente uma miúda!”
Ele olha-me e denoto-lhe uma repentina mudança na expressão. A sua habitual serenidade desvanecera-se e um misto paradoxal de desconforto e altruísmo súbito, envolveram o seu olhar enquanto se volta de novo para o mar. O silêncio absorve o ambiente. Após alguns segundos de tensão provocados pela minha pergunta, Cássio retorna ao seu habitual pragmatismo sereno. Olhava fixo o horizonte...
“É a foto da minha filha.”, responde-me secamente.
Eu ainda que não totalmente apanhado pela surpresa, mantenho-me silencioso na expectativa do que poderia surgir das suas palavras. Será a sua história um drama maior do que aquilo que me havia contado – o orfanato aos seis anos?! Subitamente se abate sobre mim um terror absurdo ao perceber que os sentimentos de Cássio pudessem ser abalados fortemente com o levantar desta nova questão.
“Se não quiseres falar do assunto, eu respeito!”, digo-lhe, na esperança de poder atenuar algum sentimento negativo que pudesse ter despertado momentos antes.
“Não tem problema... eu efectivamente tenho uma filha.”, afirma. Ele tinha dito “tenho”... sinto-me então mais aliviado ao perceber o significado do tempo presente expresso nas suas palavras.
“Mas vejo-a muito raramente, e não tem nada a ver com o facto de andar a deambular pelo mundo à procura de ondas!”, exclama, para seguidamente prosseguir: “Eu tive uma relação com aquela que foi o meu único e verdadeiro amor, ainda hoje penso assim... mas tudo não passou de uma ilusão e acabou muito antes de termos tido a oportunidade para formar seja o que for em comum.”.
Eu ouvia-o atentamente. Nunca o vira assim, de peito aberto a contar coisas sobre si. Era no entanto óbvio que tudo aquilo lhe queimava o espírito e se acumulava há muito dentro de si, sem que alguma vez tivesse tido oportunidade ao longo destes oito meses de viagem, para deitar para fora todas as suas mágoas.
“Acontece que as coisas correram mal... sabes nós na Austrália temos o péssimo hábito de nos embebedarmos até cair para o lado...” prossegue ele lançando-me um olhar conformado e até de alguma vergonha.
“E por vezes as coisas descambam...”, acrescento eu.
“Pois! Ela nunca me perdoou... mas nesse momento ela já estava grávida de 3 meses. Eu até hoje não consigo perceber o que me passou pela cabeça!”, exclama.
Cássio parecia agora um miúdo envergonhado que conta a traquinice à sua mãe na esperança de ser perdoado e poupado a um castigo exemplar. Era óbvio que lhe tinha tocado no ponto fraco.
“Enfim, qualquer tentativa de reconciliação revelou-se infrutífera e acabou tudo numa disputa nos tribunais pela custódia pela miúda. Eu entrei na guerra mais por obrigação do que em consciência. Eu sabia que tinha errado, bem como sabia que uma criança com meses precisaria muito mais dos cuidados da mãe do que dos caprichos do pai. O que me revoltou ainda assim... foi o facto de ela nunca me ter deixado ver a Caitlyn – é esse o nome da minha filhota...”. Denoto-lhe nesse momento um sorriso de menino e um olhar vidrado. Ele desvia de novo o olhar para o mar.
“Mas nunca te deixou ver a miúda?”, questiono eu.
“Durante os primeiros tempos passava a vida a fugir de mim. Eu nunca consegui acompanhar a gravidez dela, e até ao segundo mês todas as minhas tentativas para ver a minha filha foram em vão... foi nessa altura que tive de partir para a justiça novamente, quanto mais não fosse para a poder ver pelo menos aos fins de semana. Infelizmente o nosso amor transformou-se em ódio. Ela fez de tudo para me prejudicar diante da miúda. A Caitlyn tem hoje 8 anos e eu sinto que não tem uma boa imagem do pai. Entretanto ela arranjou outro tipo com quem está a viver já lá vão 6 anos... sabes, tive medo que ela perdesse todas as referências do pai e transformasse o padrasto no verdadeiro pai dela. Fiquei assustado mesmo.”
“Essa tatuagem é de quando ela tinha que idade? Cinco ou seis anos?”, pergunto-lhe.
“Sim, foi talvez a altura das nossas vidas onde...”, Cássio olha novamente na direcção daquela mãe e seu filho que agora estavam sentados e imóveis na areia observando o mar. Depois olha o céu e os seus olhos humedecem-se. Reparo que se esforça por manter a postura. Coloco-lhe uma mão no ombro e mantenho-me silencioso observando o oceano.
“Sabes... nunca fui tão feliz na vida quanto o fui naqueles fins de semana que passava com a minha menina, naquela época. Depois a nossa relação começou a piorar. Não sei se por culpa minha, da mãe ou do padrasto. Comecei a meter coisas na cabeça e nada me convencia que não eram eles que lhe estavam a envenenar a mente contra mim.”
Ele faz um compasso de espera e passa a mão pela face. Engole em seco, noto-lhe um nó na garganta.
“Até que há coisa de um ano, fiz uma asneirada das boas. Agredi o tipo que vive com a mãe da minha filha... em frente dela!”, exclama com uma mágoa profunda nos olhos. “Foi a oportunidade que eles queriam para me retirarem a minha filha de vez... e assim decidiu o juiz. Deixei de a puder ver aos fins de semana, passei a ter direito à sua presença uma vez em cada dois meses. Ate que ela deixou de querer ver-me... fiquei destroçado, pa! Não imaginas o que é um pai sentir-se rejeitado pela própria filha... é horrível, e não desejo tal coisa a ninguém!”. Cássio desta vez não consegue deixar escapar umas lágrimas teimosas, prontificando-se imediatamente a limpa-las com as mãos.
“Mas ela é muito nova, não lutaste por ela?”, interpelo-o não compreendendo tamanho conformismo.
Ele olha-me...
“Tu sabes bem o quanto o homem pode ser fraco, não sabes?”, responde-me friamente.
Eu nesse momento percebi-o perfeitamente. Afinal de contas porque havia eu fugido também? As razões pouco interessam e na verdade qualquer tentativa de as dissecar revela-se um tremendo erro. Coisas que só se sentem nunca poderão ser explicadas por palavras ou compreendidas pela superficialidade do pensamento racional.
Na verdade era óbvio que todos nós tínhamos os nossos pequenos focos de instabilidade emocional. Apenas nos transformávamos em intérpretes diferentes de um mesmo filme, com muitas coisas em comum e com muitas outras que nada tinham de semelhante. A fuga parecia ser a característica mais vincada destes dois intérpretes, fugíamos de um destino que nos tirara as poucas razões para sorrir alegremente e nos tingira o ambiente em tons de cinzento.
Neste momento o sol afundava-se no horizonte, o horizonte que tranquilizava e acalmava o mais tempestuoso dos espíritos. A mãe e a sua criança levantavam-se, o colo protector daquela mulher era agora o refúgio mais desejado e aguardado daquele miúdo, estaria exausto pela brincadeira e pedira a sua mãe que o levasse ao colo. Ela acedeu carinhosamente. Todos nós nos lembramos certamente do que é pedir o colo da nossa mãe enquanto crianças indefesas e frágeis, das desculpas que dávamos para nos acolherem em seus braços, quiçá das birras que fazíamos na tentativa de dissuadir a mãe mais renitente. Lembrei-me exactamente desses tempos, estavam muito vivos na minha memória, sorri para dentro ao contemplar tão bonitos momentos passados.
Anos mais tarde o colo da mãe desaparece, tornamo-nos maiores e mais pesados, a adolescência promove-nos a independência emocional dos nossos pais e num ápice o colo materno é substituído pelo colo protector da mulher amada. Aquele colinho protector e afectuoso, quente e confortável. A cabeça no seu peito ou no seu ventre, enquanto ela afaga os meus cabelos proferindo palavras doces e cheias de amor, protegendo aquele que ama numa atitude profundamente maternalista. É o momento em que a amante se transforma na mãe e em que o amor platónico atinge a sua plenitude. Preferia não me lembrar desses momentos, momentos que conhecia e me transportavam directamente para o universo onde Raquel ainda aparentemente vivia.
Cássio saltara para o chão alcatroado e já se preparava para recolher o fato de neoprene e a prancha! Fiz o mesmo...

16 janeiro 2006

Capitulo 3º


Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errónea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

Fernando Pessoa, 1931













Buck corria para mim, enquanto eu caminhava na areia gelada da praia em direcção à tralha que tínhamos deixado à guarda do meu amigo canino...
Aquela imagem tornara-se rapidamente num deambular vago de ilusões, uma partida da minha memória, um capricho do meu subconsciente. Como um deja vu aquela correria alegre do cão tornou-se-me incaracteristicamente familiar. Uma lembrança diluída num espaço subitamente transformado em algo distante, belo mas nostálgico. Buck movimentava-se freneticamente ao meu redor, como que me recebendo de novo no seu habitat terrestre, agradecendo-me alegremente a presença diante de si. Pulava e ladrava de contentamento, tinha finalmente o seu dono em terra e pronto a recompensá-lo com as suas brincadeiras, os seus afagos molhados e salgados que tanto gostava de receber como prémio por guardar tão solenemente os pertences abandonados na areia.
Mas lá longe, numa distância que parecia não conter em si uma real significância espacial, mas que se excluíra há muito da minha perceptibilidade temporal, estava ela... aquela que me visitava em momentos de delírio consciente ou apenas em sonhos de angústia latente.
Raquel era uma figura nítida que se tornava mais perceptível à medida que os meus olhos se adaptavam de novo ao ambiente seco e desidratado da praia, enquanto o sal ainda os queimava na sua ousadia. Lá estava ela sentada, enrolando os braços em si própria, fitando-me sorridente. Aquele sorriso único, luminoso que me fornecia a cada lampejo uma nova descarga de energia positiva. Olhava-me complacente... sempre estivera ali olhando-me. Esperava-me, como fizera vezes sem conta em momentos esquecidos no tempo. Naquele tempo que percorremos juntos e no qual nos fizemos amantes, naquele tempo em que o amor desabrochou e maturou no coração de ambos.
Sempre sentira esta cena, como uma das mais simples mas belas interacções da nossa relação. Ela sempre que podia acompanhava-me à praia e tinha o maior prazer ao ver-me surfar.
Buck sempre lhe fazia companhia.
Por vezes abstraía-se do mar, confiando cegamente nas minhas capacidades empíricas para o desembaraço em mar revolto, e divertia-se brincando com Buck, em agitadas correrias pela praia. Isto era particularmente habitual em dias de mar clássico. Era comum estar no line up e observá-los aos dois, correndo e brincando na areia como duas crianças absortas na sua própria infância.
E ali estava ela, sentada na areia fria vendo-me reduzir metros no espaço em sua direcção. A minha mente tinha tornado o céu nebuloso, recuando a um saudoso dia de Inverno há alguns anos atrás. As arribas também tinham desaparecido dando lugar a vastas dunas povoadas aqui e ali de vegetação costeira. A praia estava deserta. O mar estava agitado e difícil, não era de todo um dia perfeito e o meu corpo destilara toda a energia possível dentro de água. Sentia-me cansado e naquele dia, o vento soprava forte e sem direcção definida, saboreando cada partícula de sal que se aninhara no meu corpo. Os cabelos de Raquel dançavam ao sabor do vento impregnando-os de maresia, enquanto o seu corpo se ergue em resposta à minha chegada.
Sorri-me e beija-me. Os meus lábios sabiam a sal e ela sempre adorara a sensação daquele beijo condimentado. Atenciosamente enrola-me uma toalha ao corpo, esfregando-a freneticamente no meu cabelo e cara. “Está frio, amor!!”, comentara.
A sua respiração envolvia-me a face, o tremer nervoso das suas carnes enquanto me tentava transmitir algum calor, absorviam a minha atenção, absorto num total turbilhão de sensações – frio, calor, prazer, cansaço...
Ela ajudou-me a despir o fato térmico de neoprene.
Sempre o fazia, era imperativo que o fizesse, aliás - as suas mãos em conjunto com os meus braços, pernas e pele, num esforço conjunto para me libertar da prisão em que se tornava aquele fato que emanava um cheiro intenso a borracha. Intenso mas delicioso, sintético mas agradavelmente confortável. Pesava nas mãos, estava molhado e era de uma espessura considerável em função das condições atmosféricas.
Encontrava-me nu, em pleno Inverno, fustigado impiedosamente pelos elementos, apenas enrolado a uma toalha de praia, enquanto ela atirava com o fato para dentro de uma caixa de plástico, para logo de seguida me ajudar a vestir.
Buck continuava observando-nos, agora quieto e mais calmo.
“Ainda me pergunto, o que te faz passar por este frio todo, só para andar em cima de umas quantas ondas, ainda para mais num mar revolto e assustador como este...”, dissera-me ela, vezes sem conta... tal como agora.
“Não compreenderás enquanto não experimentares... o surf não se exprime, sente-se!”, respondo-lhe.
Ela olha-me num rasgo de cumplicidade e sorri. Foi a primeira vez que lhe vi aquela expressão quando confrontada com a possibilidade de um dia tentar aprender a fazer surf.
“O que foi?”, pergunto-lhe...
Ela sorri-me com um brilho nos olhos. Um brilhozinho nos olhos que lhe incendiava a alma, e lhe colocava um sorriso aberto e sincero. Havia qualquer coisa que me escapava. E era algo de bom... mas que eu não conseguira até aí discernir. Seria ela a dizer-mo.
“Estás com um brilhozinho nos olhos... o que foi?”, insisti eu sorrindo.
“Não sei...”, ela hesita. E depois continua, “És capaz de me ter finalmente convencido a experimentar essa tua arte de domar ondas...”.
“Até onde vai a tua curiosidade, hein!”, exclamei.
“Então? Já não me queres ensinar, é?”, respondera-me ela em tom de desafio.
“De todo... apenas estou surpreendido. Sempre foste avessa a tal hipótese...”, observo eu. “E quantas vezes te tentei eu convencer!”
Ela esboça um sorriso maternal, e afaga-me a face com a sua mão. Aquela pele suave, aquele toque de seda em minha pele era um exercício de puro sentimento que me transmitia uma leve sensação de protecção espiritual, um abrigo onde podia guardar os meus mais profundos sentimentos de afecto, sem que estes fossem alguma vez conspurcados. Era um gesto de afecto, de amor e protecção.
“Mas é assim, meu amor!”, começa ela. “De repente apetece-me experimentar, talvez esteja a nascer algo dentro de mim... não sei...”.
A sua expressão era desconcertante. O seu sorriso era enigmático. Ela escondia-me algo. Algo positivo mas que se me escapava à compreensão, e estava muito para além daquela súbita e surpreendente decisão de aprender a fazer surf.

“What’s up, mate?!”, gritou-me Cássio aos ouvidos.
Parecia acordar de um sonho. Meio estremunhado e desorientado. Parecia ter acabado de levar com um set vassoura em cima, depois de um horripilante wipe out.
Encontrava-me de joelhos na areia, sentado sobre os meus calcanhares com a prancha pousada no colo de costas para o mar. Não sei há quanto tempo me encontrava naquele transe despropositado.
Buck estava sossegado e deitado a meu lado com uma expressão benevolente.
Eu estivera claramente num estado de consciência alterada, uma espécie de hipnose regressiva que me fizera reviver momentos passados e me retirara lentamente do mundo real. Abstraído completamente do mundo à minha volta, não fazia a mínima ideia de quanto tempo teria passado e de como poderia qualquer alteração à minha volta ter ocorrido. Poderia certamente desabar uma daquelas arribas que eu não daria por nada.
A minha posição indiciava que me tinha baixado para afagar Buck, mas que num qualquer instante a minha consciência tinha passado do estado consciente para um “nirvana” qualquer que me fizera reviver magníficos momentos junto daquela que amava mas que não mais estava fisicamente comigo.
Alguém que passasse por ali e observasse a minha figura, diria que estava a meditar. Mas não... estava tão somente a relembrar.
“A meditação costuma-se fazer antes... não depois!”, exclama Cássio quando constata que a minha consciência era suficiente para lhe prestar um mínimo de atenção. “Ou serás muçulmano? Meca não é para esse lado!”, brincou ele.
Eu mantive-me calado. Estava demasiado abalado para emitir qualquer tipo de ruído.
Sentia-me vazio. De repente tinha-a novamente nos meus braços, e da mesma forma repentina com que ela voltara, desaparecera. Assim, sem se despedir, enviando-me de novo para o meu mundo real, onde eu insistia em sobreviver à custa de umas quantas ondas diárias e de alguma dose de amnésia auto-induzida.
“O gato comeu-te a língua...”, tentou Cássio sem sucesso. Rapidamente se apercebeu que o meu espírito estava em letargia aguda e calou-se. “Ok, vamos comer um peixinho grelhado para retemperar. Lunch time, Buck”, gritou ele para o cão. Este abanou a cauda alegremente.
E lá fomos nós.

29 dezembro 2005

Capítulo 2º

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.

ATLÂNTICO – Sophia de Mello Breyner Andresen


A manhã levantara-se fresca e levemente ondulada ao sabor da maré vazia que ressoava em cada canto daquela praia. O pulsar do oceano ouvia-se já como que anunciando a chegada de um novo dia. Cheio de ondas por certo.
Era uma manhã de Inverno, húmida, fria e cinzenta. As horas essas, não mereciam a minha atenção. Preferia ignorar o efeito que a noção de tempo teria sobre mim àquelas horas da manhã. O que pensaria de mim próprio e especialmente da minha relação com a cama ainda quente que acabara de abandonar, se me consciencializasse que estava prestes a madrugar, mergulhando nas águas gélidas do oceano Atlântico? O tempo deixava de existir naquele momento... E era assim há já mais de seis anos: o relógio ficava em terra.
Ainda meio sonolento, embebido numa leve moleza característica do acordar, observo o mar pela janela da carrinha. Sim, dormia numa carrinha que havia adaptado às minhas necessidades itinerantes. A vida de nómada que havia escolhido depois daquela tragédia foi um passo arriscado. Mas que alternativa se afigurava menos dolorosa? Não houve nunca uma real sensação de perigo ou medo nesta escolha, porque quando se perde tudo o que realmente temos de mais precioso, nada mais nos enraíza a lugar nenhum, nada mais nos prende à vida que levávamos. A solução foi o corte com o passado e a fuga. Foi o que fiz já lá vão meia dúzia de anos vagueando por esse mundo fora. Uma carrinha transformada em casa ambulante, gasóleo e comida! As minhas necessidades limitavam-se a esta trindade de coisas materiais. A recompensa tinha-a todos os dias de cada vez que deslizava numa parede líquida, uma e outra vez. Horas e horas perdidas no tempo. De cada vez que o meu corpo sabia a sal. De cada vez que tinha o privilégio de observar o sol escondendo-se por detrás do oceano. De cada vez que saía do mar com aquele sorriso, com aquele cansaço reconfortante... Em suma, de cada vez que era feliz, na harmonia do elemento liquido salgado, que me fazia levantar ao mesmo tempo que o sol, e me diluir na sua matriz.
Come on, mate!!! Vamos a levantar pá! Off-shore. Metro e meio.” Eram as palavras entusiastas que vinham lá de fora depois de uma pancada na janela da carrinha. O australiano já andava a pé, fresco que nem uma alface alimentada pelo orvalho.
Acabo de me vestir num ápice. Em pleno Inverno, calções de banho e sweat-shirt de algodão com um forro polar que havia comprado aquando da minha visita à Irlanda. Também lá, como aqui o capuz era uma arma fundamental contra o frio.
O frio matinal invade o espaço interior, ao abrir a porta da carrinha. Estávamos estacionados em frente ao pico. O vento soprava de Este perfeito, alisando as paredes das ondas, esculpindo cada uma com as suas mãos perfeccionistas. “este off-shore fazia chorar o Cutileiro...”, penso eu divertido mas gelado. O retoque final deste escultor natural era dado pelo esvoaçar sensual da cabeleira da onda, num movimento eminentemente feminino. O resultado desta combinação de elementos em movimento – ar e água – era uma sucessão de linhas perfeitas que perante nós quebravam sozinhas numa pequena porção de costa. “Está glass, meu”, dizia-me Cássio, sem tirar os olhos do mar. “E sem ninguém...”
“Vamos para sul, ao Malhão. Se aqui está assim imagino que lá devam estar a partir umas com uns dois metros...”, acrescento eu.
Notara uma leve surpresa na expressão de Cássio. Não havia ninguém ali, as ondas eram nossas. Não seria de esperar muito crowd, sobretudo por estas bandas e tendo em conta o dia da semana – terça-feira. Eu até percebia a sua surpresa, mas...
“Apetece-me ter um lip acima da minha cabeça, pá!”, respondo eu, como que adivinhando o que lhe ia na cabeça. Ele encolheu os ombros. “Whatever...”, murmurou.
Cássio acabou por concordar com a alternativa mais a sul. Ainda para mais não conhecia as praias dessa zona. A sua viagem viera de Norte.
A manhã estava ainda bem na sua juventude, o off-shore que alisava as paredes daquelas ondas era o mesmo que me fustigava o corpo com aquele frio cortante. “Vou beber um cafezinho quente e comer qualquer coisita”, dissera-lhe eu. Buck abanava a cauda olhando para mim com aqueles olhos sempre amigos. Também tinha fome. Como era hábito, aquele velho Labrador preto tinha direito à sua parte do pequeno-almoço. Sempre assim fora desde que era apenas uma pequena e fofa bola de pêlo negra.

Buck era apenas um cachorrinho quando o conheci. Tinha sete semanas quando me foi oferecido por um amigo que possuía uma cadela que recentemente tinha dado à luz. Dissera-me que era puro. Não interessava, eu adorei aquele animal. Aquela bolinha de pelo negro e brilhante era irresistível. Aqueles olhos avelã pediam carinho e atenção. Pediam um lar. Eu aceitei-o de imediato. Raquel fazia anos daí a uma semana e eu tencionava brindá-la com este cachorrinho. Sei que iria adorar e que esta seria a melhor prenda que lhe podia oferecer. Pedira ao meu amigo para aguentar mais uma semana, até ao aniversário dela. Queria fazer-lhe uma surpresa e tanto.
Uma semana passara entretanto, o dia era 14 de Agosto. O aniversário da Raquel. Circunstâncias várias, principalmente do foro profissional, impediram que tivéssemos a maior parte do dia juntos. Da minha boca ouviu o primeiro desejo de feliz aniversário. Um sussurro matinal ao seu ouvido, presenteado com um beijo terno. Um “bom dia” especial, num dia especial.
Ao fim da tarde voltei a olhar aqueles olhos castanhos que todos os dias me apaixonavam, como da primeira vez. Estava sorridente, era o último dia antes das férias de Verão. Para trás ficavam os projectos, os telefonemas e o stress característico da actividade profissional que desempenhava. “Férias, finalmente... “ dissera ela radiante. Abracei-a sentidamente e partilhei do seu sorriso, sabendo que lho tornaria ainda mais aberto com a surpresa que lhe reservara.
Estava ali para a levar a jantar. Iríamos a casa. Banho e restaurante. Dirigimo-nos ao automóvel. Pego-lhe na mão e digo-lhe, “Vem ver uma coisa que tenho para te mostrar”. Ela intrigou-se. O que seria? Junto à porta do carro, abro-lha. Ela fica alguns segundos sem reacção olhando para dentro do carro, enquanto Buck olhava curioso para nós dois, como que perguntando “Afinal quem são estes dois?”. Ela coloca a palma da mão em concha à frente da boca, mostrando-se totalmente surpreendida. Pega no cachorrinho com muito carinho. Foi amor à primeira vista.
“É a tua prenda de anos, amor”, digo-lhe.
“Oh querido, que surpresa! Não imaginava, que coisa tão fofinha. Que bolinha de pêlo mais linda. Amei amor, és tão lindo...”, responde-me ela com um sorriso sincero de felicidade. Buck dá um latido de contentamento. Um ladrar de cachorrinho, muito suave. Nós sorrimos e ela abraçou-me. Juntos trocámos um beijo, felizes.
Desde este dia que Buck faz parte da minha vida. A amizade que existe entre nós é enorme e verdadeira. Ele é provavelmente a única coisa que me lembra ainda hoje que um dia também tive momentos felizes fora de água.

Estava absorto neste pensamento, nem me dando conta dos solavancos resultantes da condução no "caminho de cabras" que era o acesso à praia do Malhão. Buck e Jacob, o papagaio, iam lá atrás sossegados e atentos ao que se passava. Cássio continuava como sempre calado, também ele parecia absorto e distante. Passava muito tempo assim, absorvia o que se passava em seu redor e se ninguém lhe desse conversa, certamente ele não seria o primeiro a abrir a boca – a não ser para dizer que estava "off-shore" e "glass".
“Este caminho é do pior!”, exclamei quebrando o silêncio sepulcral que imperava naquele furgão carregado de pranchas no tejadilho. Até os animais estavam calados. Um efeito contagioso dos seus donos.
“Sim, não é bem uma onda de fácil acesso... assim à primeira vista.”, responde-me mantendo a concentração na condução, onde a sua principal tarefa era tentar evitar as enormes crateras existentes no meio do trilho de terra batida. Era Inverno, e estes buracos estavam ainda mais fundos e lamacentos.
Cássio pára o carro no cimo da ravina. O terreno não lhe parecia propicio para mais aventuras, tendo resolvido ficar-se por ali. Saímos do furgão, o sol parecia querer intrometer-se entre as nuvens que teimavam em popular o céu, escondendo o azul. Um raio de sol iluminava-me. Coloquei os óculos de sol, o céu parecia querer descobrir e com ele o sol aquecer-nos um pouco o corpo e o espírito. Diga-se aliás que estava um dia de surf clássico, e esses costumavam ser pródigos em céu limpo, apesar de frios.
E assim, ali estávamos os dois a checar o pico cá de longe. Parecia estar com um bom tamanho, apesar da distância a que nos encontrávamos não permitir uma rigorosa avaliação, não só do tamanho, mas também das condições gerais do mar. Uma coisa era certa. Estava glass, com uma formação excelente, sem on-shore que desordenasse o mar e muito consistente. Lá ao longe avistámos dois vultos que eram seguramente dois surfistas. Um estava já bem fora, no outside, e o outro preparava-se para entrar. As condições pareceram-nos excelentes e não havia sequer razão para hesitar em entrar. “Siga...”, digo eu.
Começámos a retirar as pranchas de cima do furgão. O quiver era variado, especialmente o dele. O meu tinha ficado todo na carrinha. Tinha apenas colocado a minha prancha 6’4” juntamente com as dele, nas quais se encontrava até um longboard – talvez um 9’0”.
A operação de nos preparar-mos para entrar no mar era rápida e sem grandes segredos. A temperatura do ar rondava perto de 10ºC o que não convidava a um corpo desnudado durante muito tempo. Por isso rapidamente vestimos os fatos de neoprene, metemos alguma tralha nas mochilas. Preparámos as pranchas e descemos a ravina até à areia. O Buck vinha alegremente, abanando a cauda, atrás de nós. Adorava a sensação única da areia a envolver-se nas patas e todo o espaço que uma praia lhe proporcionava, para correr, rebolar, brincar, tentar caçar gaivotas que estivessem em terra, etc. Mas Buck preferia sempre nestes momentos observar o dono, na segurança da areia fria. Calmo, pachorrento, mas sempre atento ao mar. É possível observá-lo vezes sem conta levantado de orelha fita tentando descobrir-me naquela imensidão de espumas brancas, que em certos dias parecem transformar o mar num lugar absolutamente caótico e sem nexo.
Mais uma vez, e como era hábito, Buck deitou-se perto das mochilas e das toalhas que havíamos deixado na areia e ali se deixou estar observando-nos. Fomos em passo de corrida lenta em direcção ao mar. Ao colocarmos os pés em contacto com a água constatámos que esta se encontrava bem mais agradável que cá fora. Apesar de tudo, fria o bastante para nos colocar numa hipotermia grave caso não tivéssemos a protecção do fato de neoprene.
Parámos para fazer o aquecimento, absolutamente fundamental antes de entrar na água. Este era um procedimento especialmente importante para evitar as cãimbras e outro tipo de lesões musculares devido à rigidez dos músculos ainda frios. Ao fim de cerca de 20 minutos de aquecimento lá entrámos.
A sensação da água fria debaixo de mim ao entrar na água é um misto de nervosismo e calma, um paradoxo curioso que se esfuma à medida que se apanham mais e melhores ondas e a confiança aumenta. O nervosismo inicial face à sensação de um perigo que está sempre presente por mais experiente que seja o surfista, dilui-se naturalmente com o aumento da confiança e do conhecimento do pico. Ainda assim, e nós sabia-mo-lo especialmente bem, esta confiança é uma sensação enganadora dentro de água pois é certo que de um momento para o outro qualquer pedaço de Céu se pode tornar no mais angustiante dos Infernos num ápice. A sensação inicial de perigo é de facto a que melhor representa as condições, deixando-nos sempre alerta e preparados para qualquer imprevisto – o mar é um lugar imprevisivel por excelência. No entanto, sem a confiança que se vai ganhando dentro de água, será impossível surfar as melhores e mais poderosas ondas. É uma questão trivial - sem confiança não pode haver qualquer tipo de evolução.
A calma inicial é interrompida quase instantaneamente pelas primeiras rebentações, que têm necessidade de ser evitadas recorrendo ao tradicional “patinho” – cabeça para baixo, joelhos na prancha e rabo para o ar, tal como os patos - de modo a poder haver uma progressão para o outside. Só assim se podem apanhar as ondas, estando no local certo, à hora exacta. De patinho em patinho lá vamos progredindo, mergulhando por baixo das rebentações. A calma já havia desaparecido, começando a dar lugar à adrenalina. Os sets eram enormes. Seguramente dois metros mal medidos. Possivelmente algumas ondas superavam esta marca.
“Não querias mar grande? Aí o tens...”, dizia-me Cássio rindo-se.
No pain no gain, my friend”, respondo-lhe bem disposto, ele concorda.
Mais uns quantos patinhos e estávamos no outside, onde por perto andavam os surfistas que há instantes havíamos observado da ravina.
Quase instantaneamente, Cássio que estava mais a sul rema freneticamente para uma onda média e apanha-a – era uma direita. Drop, algumas curvas na parede da onda para ganhar velocidade. O metro e meio de onda permite-lhe fazer um bottom-turn longo indo à base desta. Fixa o lip com o olhar antecipando o que ia fazer, e sobe a parede para na zona critica do lip da onda, dar uma paulada seguindo-se um floater animal passando toda a secção no fim da qual aterra na perfeição. Eu observava tudo sentado na prancha. Gritei em sinal de incentivo por tão brilhante cartão de visita. A sessão havia começado em grande.
A onda não era normalmente muito extensa não permitindo por isso uma grande sequência de manobras. Ainda assim, o swell neste dia estava a ajudar, e o pico estava extremamente consistente, sobretudo com um bom tamanho e no máximo das suas potencialidades no que toca ao seu comprimento. No entanto nunca mais de cinquenta metros surfaveis, dando ainda assim para duas ou três manobras de bom nível, incluindo eventualmente um tubo visto que não estava a fechar. Para completar, estavam a funcionar na perfeição a esquerda e a direita do pico. Isto era para nós uma dádiva rara, podendo assim “dividir o mal pelas aldeias” sem que ninguém se ficasse a rir. Cássio era regular e eu era gooffy, o que permitia a cada um de nós surfar de frontside à vontade.
Estávamo-nos a divertir bastante. O mar estava clássico e o tempo não existia. A cada onda que apanhava sentia-me mais confiante. A adrenalina libertava-se no meu corpo à medida que me fundia no oceano, que interagia harmoniosamente com as forças extremas do Atlântico. Cada uma daquelas ondas tinha viajado milhares de quilómetros para morrer aqui nesta pequena faixa de costa encravada entre Sines e Milfontes. Uma qualquer tempestade no Atlântico Norte, ao largo da Terra Nova teria originado as enormes vagas que trazem consigo o espírito do oceano longínquo. Uma onda não é mais do que uma vibração que faz elevar uma massa de água ao aproximar-se dos baixios costeiros. Traz consigo apenas a energia que a gerou, e mais nada. Em cada onda está a alma do oceano, a energia e a força de um elemento – a água. O ciclo natural das coisas faz-se de interacção, o equilíbrio deste planeta provém da interacção entre os vários elementos, entre as várias esferas. E eu não conhecia melhor e mais harmoniosa fonte de interacção entre a biosfera e a hidrosfera, que o deslizar hipnótico nas ondas. Golfinhos e focas têm este mesmo hábito, que só muito superficialmente pode ser considerado unicamente hedonístico.
Mais do que um simples prazer, o acto de deslizar numa onda toma em si um significado muito mais amplo, o da comunhão com a Natureza, a comunhão perfeita entre a nossa carne e a nossa alma, entre nós e o Cosmos. Mais do que um desporto ou um simples prazer, deslizar numa onda é uma janela que se abre para uma forma diferente de ver o mundo, um estilo de vida. Surf é a arte de viver a vida intensamente, no seu sentido mais lato.
Surf Power, hein?! Há quem lhe chame a arte de destruir ondas. E se há artista especialista dessa vertente, és tu!”, exclama Cássio, recém chegado ao pé de mim. “Até dá pena ver os farrapos em que se transformam certas ondas, após lhe passares por cima!”.
Eu sorrio.
A quantidade de ondas “consumidas” era de tal forma elevada que a ditadura dos números, não mais se aplicava.
Vinha aí mais uma, observo-a ainda longe. Uma massa de água começa a elevar-se da superfície aparentemente estática do oceano. “esta é das grandes”, penso eu. Começo a remar. Era enorme a onda, sinto-me no topo do oceano... tinha facilmente dois metros e meio e era uma esquerda. O take-off seria crítico, muito vertical. Apanho a onda, dropo-a facilmente ao longo da parede. Um bottom turn para preparar a manobra seguinte. Uma paulada, e o atraso necessário para ser apanhado pela secção que quebrava originando um tubo razoável. Entro no tubo, a velocidade é elevadíssima e tem de ser potenciada ao máximo para poder sair da “toca”. Um momento de suspense em que o mar me abraça por completo e onde o tempo parece parar. E eis que saio pelo buraco da agulha. Cássio delira e manda um berro de satisfação. Passei esta primeira secção em êxtase, a adrenalina tomara conta de mim, e a energia que o meu corpo ainda tinha combinava na perfeição com esta onda que ainda tinha power o suficiente para mais uma manobra. Uma ida à base – bottom turn bem fluido - e de uma assentada lanço-me naquela rampa liquida contra a outra secção que começa a fechar em sentido contrário ao meu movimento, como um ultimo fôlego da onda. Lanço-me contra o lip que estava prestes a colapsar e voo em direcção aos céus, impulsionado pela combinação da energias do meu corpo e da onda. Um ou dois segundos depois, dá-se uma aterragem controlada na espuma. Olho para trás e perco velocidade elevando os braços em direcção a Cássio que estava no outside. Afundo-me na água à medida que a prancha perde velocidade.
Esta onda já não passava de um caótico turbilhão de espuma branca. E o meu sorriso era mais valioso que mil palavras para expressar o que me ia na alma. Foram certamente umas 6 horas dentro de água. O sol que neste momento já se fazia notar em todo o seu esplendor, ia alto fazendo adivinhar o tempo já bem perto do meio-dia. A maré inclusivamente já estava praticamente cheia e eu tinha os dedos completamente engelhados. Resolvo sair, exausto.
O tempo voltou a existir.

25 dezembro 2005

Capitulo 1º





Estava só junto às ondas, numa noite de estrelas.
Nem uma nuvem no céu, nem no mar velas.
Meus olhos viam para além de realidade.
E os bosques, os montes, e toda a natureza,
Pareciam falar num murmúrio de incerteza
Às ondas, à claridade.

ÊSTASE – Victor Hugo










Sorvia o chá quente enrolando as mãos frias em volta do copo colorido de onde se escapava um vapor aromatizado a ervas, relaxante, que confortava e refrescava a alma e aquecia o corpo frio, fustigado incessantemente pela maresia húmida que provinha do mar. Era noite escura, breu cerrado... a lua essa estava em crescente, tímida e pouco luminosa. O som da dinâmica oceânica ouvia-se como o bater de um relógio de pêndulo. Eram as ondas que partiam lá fora, regulares, sincronizadas e certinhas qual relógio suíço. O som que vinha do mar era-me familiar, era-o para qualquer ser como eu. A força poderosa que estava por detrás daquele som significava para mim a mais bela manifestação da natureza e proporcionava-me as mais sublimes sensações alguma vez vividas.
Nesta noite sentia-me bem, o frio diluía-se na aura de calor emanada pela fogueira, o fluido quente e saboroso que corria na minha garganta tonificava-me o corpo, mantendo-me quente e confortável. “Trouxe-o de Marrocos, aquando da minha estadia em Ancre Point!”, murmura-me Cássio enquanto enchia o segundo copo de chá. “Parece que não trouxeste só o chá”, respondo-lhe apontando para os copos, tipicamente marroquinos, de vidro colorido. Verde, azul ou vermelho todos decorados com padrões magrebinos. Ele olha-me por cima dos óculos e a sua expressão era de concordância, mantendo-se concentrado em adoçar o chá com um pacote de açúcar que havia surripiado de um pequeno café onde havíamos parado para comer qualquer coisa, em Porto Covo.

George Steiner dissera um dia que a Europa era feita de cafetarias e pequenos cafés. Que a sua cultura, costumes e vivências tinham como denominador comum esses mesmos cafés. Fernando Pessoa frequentara os cafés de Lisboa, Kierkegard passara por alguns enquanto caminhava nas ruas de Copenhaga. As mais brilhantes mentes europeias, artistas conhecidos ou pensadores indigentes, todos tinham os seus cafés, balcões ou simples tascos, onde fluía o pensamento e criações que moldaram a Europa, ao longo dos tempos. Este era um facto que tentara explicar ao meu novo amigo luso-australiano, quando este me indagara acerca das razões para uma tal proliferação de cafés, pequenas cafetarias e enormes esplanadas por todo o território luso. “Em qualquer grande metrópole, cidade ou vila... lá está mais um café, uma esplanada, por onde quer que passe. As pessoas aqui parecem não conseguir passar sem estes locais”, dissera-me ele tentando fundamentar a sua questão.

Cássio preferia o chá! Continuava calado sorvendo o seu chá quente, enquanto eu absorvia a maresia, deixando as palmas das mãos coladas ao vidro verde do meu copo marroquino.
Cássio não era de grandes conversas. Era notório que se preocupava mais em recolher informação de tudo o que em seu redor se passava. No mar, essa faceta era claramente uma qualidade – nunca vira alguém apanhar ondas como aquele tipo. Em que condições fossem, a sua visão e leitura do mar permitiam-lhe apanhar sempre as melhores. “Poupo energia observando o mar com atenção”, dizia. De facto, eram raras as vezes que uma onda lhe roubava a energia do seu corpo não compensando o seu espírito de igual forma. Não era um tipo sisudo nem demasiado severo, era no entanto um simples indivíduo pouco dado à tagarelice. Australiano de nascimento - o surf corria-lhe nas veias - e português de descendência – o sal era condimento do seu sangue – estava há duas semanas de visita a Portugal, pela primeira vez. Órfão aos 6 anos, nunca tinha tido a oportunidade de conhecer o país da sua mãe, conservando no entanto a língua entretanto esquecida e recentemente reaprendida, depois de alguns meses no Brasil. Viajava há já oito meses de prancha às costas. Era a perfeita imagem do estereótipo do surfista em busca da onda perfeita. “Soul Surfer!!! (risos) Há cada vez mais tipos como tu e eu... que por qualquer vicissitude da vida, resolvem enfiar-se numa jornada de introspecção, escapando a um mundo que de outra forma acabaria com a nossa vida. Lentamente, muito lentamente...”, dizia ele na primeira conversa que tivéramos, quando eu lhe contara a história da minha vida. Eu assentira calado.
Havia pouco mais a dizer deste quarentão, que viajava num forgão VW Transporter de 73 e na companhia de Jacob, o seu velho papagaio.
Continuávamos sentados nas dunas em volta da fogueira, degustando o chá que Cássio havia trazido do Magreb.
“O chá tem a mais elevada qualidade que consigo entender em algo que se beba...”, dizia ele olhando o mar escuro. “Aquece-me a alma e o corpo no Inverno. Refresca-me no Verão. Ainda assim, continua a ser apenas água com o vício do sabor”.
Eu sorri. “Interessante. Nunca tinha pensado nisso...”.
“Sabes o que mais me entristece na história da tua vida?”, pergunta-me ele repentinamente. “É teres apenas 30 anos!!”
Eu entendi o sentido daquelas palavras e continuei a olhar o infinito. “A tragédia não escolhe datas... simplesmente acontece, e quando nos damos conta, a morte afigura-se-nos mais simpática.”, respondi. “A minha aconteceu quando eu tinha 24... a tua quando mal sabias o que era o significado de vida ou de morte.”
“Correcto, mas a tragédia diluiu-se na minha vida como dificilmente a tua se diluirá. Aprendi a viver com isso, aliás... dir-te-ei que moldou aquilo que sou hoje, da forma mais positiva que possas imaginar. Fez-me chegar ao surf! Fez-me crescer mais depressa, ainda que isso não seja totalmente positivo. Eu hoje, apesar de tudo sou feliz. Perdi os meus pais quando era novo, é um facto... mas também é um facto que a minha capacidade para amar era mais limitada. Que a minha noção de vida e de morte não era tão absoluta e dramática como o é hoje para a maioria das pessoas. Senti a morte dos meus pais na saudade, na sua ausência, na falta de carinho e afecto que só eles me poderiam dar. Mas passaram 34 anos, aprendi desde cedo a viver com isso, tornou-se no facto incontornável da minha vida. Uma cena do filme da minha existência. Hoje sou feliz, não só pelas ondas que apanho, pelos países que atravesso, ou pelas mulheres que já tive... mas essencialmente pela vida que levo. Aqui como na Austrália. Esta viagem não é um escape a esse acontecimento, é um escape à monotonia que também pode destruir-nos lentamente. A minha vida, essa sim tornou-se num escape à minha tragédia pessoal. Não acredito que seja agradável perder-se quase tudo em alguns segundos, aos 24 anos, com projectos e sonhos por realizar... a dois”
Concordo acenando de olhos fixos na fogueira.
“Tu queres apenas fugir à mágoa e à solidão”, conclui.
“Solidão... essa compensa-se com as ondas. A mágoa dilui-se no mar, de cada vez que ele me recebe. Quando não tenho ondas, definho... a solidão e a mágoa tomam conta de mim, por isso tenho de viajar, para poder ter sempre um motivo para entrar no mar: as ondas.”
“É a isso que eu me refiro. É precisamente aí que a tua história se diferencia da minha”, diz ele olhando-me complacentemente.
O silêncio voltou a envolver a noite, cortado apenas pelo estalido da madeira a arder e pelo som das ondas que quebravam lá fora...

Capitulo 0


Haviam passado alguns anos desde que aquela face me tinha fermentado o sopro lento do coração, uma última vez. A simplicidade daquele sorriso, o suave deambular das suas carnes, o leve cintilar dos seus olhos e aquele dissuasivo doce impregnado nas suas palavras. Anos! Anos passaram desde aquele ultimo suspiro... breve, ébrio – definitivo.

Passaram-se anos, os mesmos que me acompanharam pelos caminhos percorridos desde esse dia. Perante o passado, havia eliminado o meu sedentarismo e motivara uma nova jornada, queria esquecer o injusto destino desenhado no meu karma, redefinir o meu silêncio perante a vida, e alimentar um sonho disfarçado de quimera – tudo depois do acordar violento dum sonho tornado pesadelo.

A minha vida, tornara-se desde a sua morte, num encarrilar constante de perspectivas inacabadas. Fugia do mundo terreno refugiando-me no etéreo mundo do espirito, só, despojado da pátria, acolhido num mundo de introspecção. Tornara-me um eremita nómada – um involuntário eufemismo moderno.

... sim, desde a sua morte, a morte daquela que amara em tempos, a morte de quem matara – naquele dia quem conduzia aquele carro era eu! Um estridente derrapar...

um flash angustiante...

...e o impacto frio e seco, inundado daquele indescritível som laminar de chapa contorcida... olhei para o lado, um olhar distante jazia diante do meu, a vida esfumara-se daquele corpo prostrado ao meu lado, o seu coração quente do meu amor, tornara-se gelo, inerte e parado, desejei naquele momento que ao invés do dela, o meu tivesse tido tal sorte. Desde esse dia que o desejo, tivesse eu tal poder para voltar atrás no tempo...